2021 foi o ano de finalmente tirar do papel um plano antigo: percorrer novamente o Caminho de Santiago e neste texto eu quero compartilhar um pouco do que foi o momento da decisão, apandemia e a execução. O texto é longo e cheio de considerações muito particulares. Não foi tarefa fácil resumir esses 13 dias em algo enxuto de verdade.
De qualquer forma, espero que de alguma maneira este texto possa inspirar a futuras peregrinas e também peregrinos.

Saindo da inércia

Em 2013, o Leonardo, que é meu companheiro, e eu percorremos o famoso Caminho Francês. Caminhamos juntos a cada instante. Foi uma experiência enriquecedora e que nos deixou marcas profundas. Mas – sim, existe um “mas” – sempre falamos sobre o como seria interessante a liberdade de poder fazê-lo outra vez, dessa vez cada um no seu ritmo e de certa forma, separados.

Resumindo um pouco, em 2019, após meus anos de transformação e aprendizado em pautas importantes, como a do feminismo, e depois de um ano cheio de perrengues (isso ainda antes da pandemia), decidi que era hora, com uma diferença: dessa vez eu gostaria mesmo, enquanto mulher,  de me colocar a prova e fazê-lo sem o meu parceiro de aventuras. Dessa vez, o desafio era só meu.

Decisão tomada, a saga de ir sozinha estava apenas começando. Na verdade, a saga teve inicio muito antes de que eu colocasse as botas para andar. Começou com a pergunta: “E agora, que rota eu faço”?! Eu tinha apenas um número em mente: 300 km. Pensei em sair de Leon, percorrendo novamente parte do Caminho Francês, mas acabei mudando de ideia para poder fazer algo diferente. Foi aí que me interessei pelo Caminho Primitivo. Seriam 300 e poucos quilômetros em 14 etapas (dias), nada mal.

Rota escolhida. Passagens compradas. Mochila no jeito. E… veio a pandemia. Os planos tiveram que ser postergados.

A retomada de planos, apesar da pandemia

Eu sigo repetindo que 2020 passou como um borrão. A pandemia me afetou, assim como a todos, de um jeito que não imaginava que poderia acontecer. Na Espanha, onde vivemos, tivemos os meses de confinamento, muita tristeza e insegurança. Perdi tios, tive crises de ansiedade, chorei desconsoladamente pelas ruas vazias. Foi então que no fim de 2020, quando comecei meu processo de terapia, passei a reorganizar minhas emoções. 

Em abril de 2021, ponderei se era hora retomar meus planos ou não. Tive um suporte gigante do meu companheiro, que foi muito importante. Ele não se meteu em quase nada, além de alguns pitacos aqui ou ali na minha mochila, mas não olhou meu guia com a rota, ou ficou fazendo um grande alarde para me deixar insegura. Ele fez o mais importante, me ajudou a racionalizar que meus planos eram factíveis e me deu espaço para que eu tomasse minhas próprias decisões. Ônus ou bônus, as consequências seriam minhas.

Tive alguns momentos de ansiedade, sim, e fiquei muito insegura também. A esta altura já sabia que o Caminho Primitivo é um dos que recebe a menor quantidade de peregrinos, que possui menos “estrutura” de albergues e outras facilidades. É também uns dos mais exige um bom condicionamento físico. Com a pandemia, eu já sabia que seria ainda mais difícil. 

Para me tranquilizar, busquei conversar e ler sobre pessoas que fizeram o mesmo que eu pretendia fazer, mulheres sozinha por rotas do Caminho de Santiago. Nessas horas, pelo menos comigo, apoio de familiares e amigos que não passaram pelo mesmo, não adiantam muito. Eu precisei de referências que sabiam o que eu iria enfrentar. Foi ótimo, apesar de uma pontadinha de insegurança, eu consegui deixar a ansiedade de lado.

Planos em progresso outra vez. Setembro, seria o grande mês. 

Algumas pedras no caminho

Minha mochila estava perfeita, as botas, sem muito uso, me deixavam um pouco insegura. Mas era o meu preparo físico que me preocupava. Depois de 3 anos andando pelo menos 5 km por dia, passei, com a pandemia, a andar ou me exercitar quase nada. Lá estava eu, prestes a sair praticamente do zero aos 20 km diários. Sinceramente? Eu preferi ignorar o quão mal essa aventura poderia me sair. 

Preferi me manter focada e confiante. Já levava algumas trilhas longas no histórico e conhecia meu corpo nessas situações, sabia qual era o meu limite. Então, eu tinha um plano. Andaria no meu ritmo, mas sairia bem cedo para poder chegar em horários razoáveis aos albergues. Só me esqueci que em setembro, às 7 horas da manhã continua noite. 

Bom, eu teria que lidar também com a escuridão e uma lanterna. É o que temos, então lidemos com as adversidades.

Com pão e vinho se anda o caminho e se faz amigos

Meu primeiro dia de caminhada foi a chave para todos os outros, este dia me moldou de muitas maneiras. Andaria 23 km de Oviedo a Grado, em Astúrias e eu era pura adrenalina e felicidade. Muitos quilômetros depois, ao pegar a trilha, percebi a realidade do quão solitário aquilo seria. Quase não havia movimento de peregrinos. É, finalmente a aventura começava. 

Na verdade, me senti muito orgulhosa e valente, não vou negar. O mais legal foi que não demorou muito para ver a primeira mulher, também sozinha, mas com passos mais acelerados. Horas depois, encontrei outra peregrina, uma holandesa. Que boa surpresa! Nos tornamos amigas e muitas vezes, companheiras de quarto e de vinho. Claro, haviam outros peregrinos, homens também, alguns poucos casais, gente de todas as idades. Mas foi só no fim do dia, no albergue, que me dei conta disso. Não eramos muitos, o contrário do que costuma ser o Francês, mas eramos uma boa “equipe”.

Neste dia senti na pele o que já havia lido sobre o Caminho Primitivo. É o mais bonito, se você gosta de natureza, mas também é o mais duro. Quase fiquei sem água depois dos primeiros 10 km e não havia lugar para comprar ou pedir, ou para descansar e tomar algo, ou para qualquer uma dessas coisas que é possível fazer no Francês. Felizmente, depois de este semi sufoco, encontrei um bar.

Também aconteceu de eu tentar acelerar os 5 km finais, acompanhando um peregrino que acabara de conhecer. Faltavam 100 metros para chegar ao albergue e quase desmaiei. Precisei parar ali por uns 5 minutos, enquanto jogava água na nuca e decidia se eu chamava ou não um táxi (ou uma ambulância). Mas deu tudo certo e consegui chegar.

Apesar de ir sozinha, eu não sou do tipo que fica calada em um canto. Além disso, quando você está sozinho, pessoas tendem a se aproximar. É algo natural. Neste dia, alguns de nós criamos laços que ainda existem. No entanto, não caminhávamos juntos o tempo todo, costumávamos nos encontrar no final do dia e claro, comemorávamos. Também nos desentendemos algumas vezes, mas a vida é assim, não é verdade?

E… ao andar se faz o caminho

Mas caminhar sozinha. Será mesmo? No fim das contas, cada peregrino precisa entender qual é seu ritmo. Eu, por exemplo, madrugava e o incio da caminhada era em silêncio, mas logo colocava o Spotify para tocar minha playlist especial ou meus podcasts. Musica sempre me ajudou a me desconectar. Além disso,  quase que diariamente dizia para o Leonardo “quer andar comigo?” e caminhávamos juntos por um tempo, por chamada de video. Algumas vezes, seguia alguns quilômetros com alguns peregrinos.

Esses eram meus rituais e uma das graças de começar o caminho sozinho é essa. Ter a liberdade de ter seus próprios rituais, poder decidir se quer andar mais ou não, acompanhado ou sozinho, quando fazer as pausas, etc etc. Além disso,  como disse antes, se você estiver sozinho e aberto a conhecer pessoas, mais peregrinos te farão companhia, sempre que você precisar. Sozinhos nos expomos a um mundo novo, se estivermos abertos a isso, sem que nada nos leve de volta à nossa zona de conforto.

Por andar mais devagar, costumava sair bem cedinho, antes do sol nascer. Caminhava a primeira hora no escuro, sozinha, desejando intensamente o raiar do sol. Era um tanto assustador, mas eu já tinha outros problemas para lidar. No segundo dia, comecei a sentir meus tornozelos e todos meus músculos doíam como o inferno. Minhas botas machucavam meu dedo e eu, por dias, comecei a caminhada chorando de dor. Se não fosse pela minha cabeça, meu corpo não teria aguentado. 

Certo dia, descendo uma montanha, quando meus amigos já haviam passado por mim, comecei a sentir uma dor aguda em um dos tornozelos. Neste dia, tentei improvisar uma tala usando uns gravetos – idiota, eu sei – para tentar imobilizar um pouco o tornozelo, pelo menos durante a descida. Sinceramente, eu senti uma força gigantesca. Em outras situações eu teria entrado em panico ao ver a descida íngrime. Sem romantizar a situação, eu não me colocaria em risco em hipótese alguma, mas estar sozinha me fortaleceu. Porém, eu conheço os limites do meu corpo. Até então, eu tinha consciência que não era nada muito grave e se fosse, eu ainda poderia ligar pedindo ajuda.

Um outro dia, cheguei ao fim da etapa acreditando que poderia seguir um pouco mais e encontrar minha amiga na próxima vila, seriam mais 7 km. Depois de sair e fazer os primeiros 3 km, com muita dor, sentei no meio de uma estrada de terra e lá fiquei um tempo. Era tarde demais para voltar, eu precisava seguir. Não suficiente, começou a chover e só me lembro de pensar: continue andando. Consegui chegar e não consegui fazer muito mais que comer e dormir. Bati meus 34 km neste dia. Até pode parecer um tanto dramático, mas não é. O que quero dizer é que pode ser sim um grande esforço físico e doloroso, mas é possível. 

Muitas histórias, dores e lágrimas depois cheguei ao que seria meu penúltimo dia de peregrinação. Eu tinha um plano, terminaria os 310 quilômetros em 14 dias. O Leonardo chegaria na noite anterior e me encontraria em frente a catedral. Acabei não usando o meu dia de descanso, então me restaria descansar no último albergue antes de chegar a Santiago. Poderia chegar “fresca” à Santiago, já que seriam somente 5 km no último dia. 

Porém, meus novos amigos já estavam a caminho da catedral, e eu ainda teria que “enrolar” um dia. Quando já havia vencido a metade dos quilômetros do dia, começou a me bater um saudosismo, uma certa tristeza. Mudei de ideia. Danem-se os planos, avisei a todo mundo que tocaria direto, calcei minhas sandálias de caminhada – meus pés já não aguentavam mais as minhas botas. Mas antes de seguir, parei em um pequeno bar, aproveitei minha última cerveja da peregrinação e segui rumo a Santiago. 

Foram 32 km, horas de podcasts e música, dor e suor. Cheguei! Cheguei em um cenário que eu não tinha me imaginado: no meio da tarde, exausta, podre de suada, cheia de dor e sozinha. Na praça em frente à catedral, não estavam meus amigos ou o Leonardo, nenhuma cara conhecida. Somente eu e a catedral (e os outros tantos peregrinos, claro). Me juntei aos outros peregrinos sentados no chão da praça e ali fiquei um bom tempo. Eu consegui e era o meu momento com ela, a catedral! Decidi então seguir em direção a oficina dos peregrinos, virei a esquina e surpresa: meus amigos estavam em um bar. Todos comemoramos a minha mudança de planos e nossa vitória. Nem nos meus melhores planos eu poderia imaginar que minha aventura solo terminaria tão bem.

Desses 13 dias, levo muitas histórias. Desde perder a minha bota até comemorar meu aniversário rodeada de peregrinos, no meio de um restaurante, cantando parabéns em uns sete idiomas. Sem contar as inúmeras vezes em que pensei em pegar um táxi, mas desisti. Levo histórias e muita gente. Trago na memória as várias mulheres fenomenais nesses 310 km de caminhada, cada uma delas me ensinando, à sua maneira a ter corager e seguir.

Me desafiar assim, sozinha, foi uma das melhores decisões que eu poderia ter tomado. Animo a qualquer pessoa a fazer o mesmo. Mais que isso, encorajo a que conheçam de verdade as pessoas com as quais dividem a trilha com você. No Caminho Primitivo, a maioria começou também uma caminhada solo, e quilômetro após quilômetro os nossos caminhos foram se cruzando. Essa sempre vai ser a magia que eu vejo no Caminho de Santiago.

Neste post, listo algumas dicas práticas sobre o Caminho Primitivo